segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Sobre gatos, casamento e amor.


Artigo VIII 
Fica decretado que a maior dor 
sempre foi e será sempre 
não poder dar-se amor a quem se ama 
e saber que é a água 
que dá à planta o milagre da flor.

Os Estatutos do Homem - Thiago de Mello

   O lindo texto de Thiago de Mello fez 50 anos em 2014... Mas, eu o li pela primeira vez na quarta série, quando eu tinha apenas  9 anos, nos idos anos de 1988. E eu me apaixonei! E decorei esse Artigo para jamais esquecê-los.
   Eu amo gatos. Amo mesmo. E já tive alguns ao longo da vida. Tive dois gatos amarelos, que foram abandonados na porta da nossa casa, na quadra 15 de Sobradinho, onde vivi até os 19 anos e pouquinho. O primeiro se chamava Fievel e, da mesma forma como o Batatinha, que chegou anos depois, foi deixado de tal forma tão pequeno que tinha de tomar leite em um frasco de remédio de nariz. 
    Mas, papai não gostava de gatos. Não obstante, eles foram ficando, sem, contudo, jamais terem posto as patinhas dentro de casa e eram criados soltos. Acostumaram-se com os cães com os quais brincavam quando desciam dos telhados. 
    Na minha imaturidade e desconhecimento, eu não cuidei deles como deviam ser cuidados e nem dava-lhes a atenção que mereciam. Simplesmente eles sumiam, creio eu que mortos em brigas. 
    Anos se passaram e eu fui morar com a minha tia que tinha, na época, duas gatinhas, sendo uma SRD e outra Persa. Quando lá cheguei fui logo adotada pela SRD, uma escaminha muito fofa, gorda e serelepe, minha amiguinha. Nina era o nome dela. Onde eu estava no apartamento, ela estava junto. E, pasme, se eu abrisse meu olhos ao acordar no quarto, mesmo sem dizer nada, ela já começava a pedir para entrar. 
    Muitas vezes, quando eu acordava o sofá modular estava completamente espalhado pela sala, porque ela escondia seus ratinhos de brinquedo e, na brincadeira - ela era enorme e muito gorda - ela fazia aquele pandemônio... Era impressionante de ver. Ela me levava até a porta quando saía e me recebia todas as noites quando eu chegava. 
    Passava a noite no meu colo e, enquanto eu estivesse acordada ela ficava junto a mim. Aos finais de semana, quando eu tinha a chance de ficar o dia inteiro em casa, ela estava lá comigo, invariavelmente.
    Foi ela que me fez apaixonar por gatos. Eu sempre dizia a ela que, quando eu fosse embora da casa da minha tia eu a levaria junto comigo. E eu saí. Um dia, em uma visita, Nina, como de costume, me levou até a porta e eu disse: "vamos, Nina? Vamos comigo?" E ela foi até o elevador. Cheirou tudo, analisou e, creio eu, chegou à conclusão de que aquele lugar onde eu queria levá-la era muito pequeno, muito apertado e sem janelas ou conforto algum. Então, ela olhou para mim de um modo como quem dissesse: "é aqui que vc mora"? E voltou. 
    A vida continuou, muitas coisas aconteceram... Eu já havia saído da casa da minha tia, o namoro acabou, voltei para a casa dos meus pais, durante a reforma da casa, voltei para a casa da minha tia, quando a reforma acabou, voltei para a casa dos meus pais, engravidei, casei e, depois de algum tempo, soube que Nina havia fugido pois minha tia, depois da morte do meu avô paterno, mudou-se do apartamento para uma casa grande para acomodar minha avó e meu tio que era especial. Nina não se adaptou. Eu soube quando já estava em estado avançado de gravidez e ninguém queria me contar por causa disso, pois sabiam como eu era louca por ela.
    Estava com cerca de 6 anos de casada quando adotei uma gata. Resolvi que todos os gatos que tivesse teriam nomes de artistas plásticos, escritores ou musicistas eruditos. E a primeira era a Tarsila, em homenagem à Amaral, mulher elegante, bela, inteligente, independente e muito à frente de seu tempo. A minha Tarsila é exatamente assim. 
    Meu marido é asmático. E sempre tinha crises. Identificamos, mesmo antes da chegada de Tarsila, que um dos motivos pelos quais ele tinha crises era a parede infiltrada e mofada do quarto onde dormíamos. Pois bem, consertamos e tudo legal... Tarsila chegou e não rolavam muitas crises. Mudamos de casa e as crises de asma do marido se asseveraram. Concluímos que era por causa do guarda-roupas. Na impossibilidade financeira de trocá-lo, meu consorte resolveu que dormiria no outro quarto. 
    Pois bem, Camille, minha outra gata chegou e trocamos o armário e, de quebra, fizemos o do quarto da filha e equipamos o escritório. Marido voltou a dormir no quarto e, por um tempo, ficou sem ter crises, somente algumas vezes.
    Como ele era com as gatas? Não gostava e não gosta, mas até aí tudo legal, porque eu quem fazia a maior parte das obrigações com elas, inclusive todas as responsabilidades de uma "mãe" de gatos. 
    Todos sabem que eu tenho depressão e que, por algum tempo, até que eu realmente fizesse um tratamento sério e multidisciplinar, estava descontrolada... Eu saía de casa para trabalhar e isso porque minha filha estudava em uma escola quase ao lado do meu trabalho. Então, digamos assim, Sofia era o motivo pelo qual eu saía da cama todos os dias. Portanto, até mesmo meus gatos, minha casa, eu, meu marido, tudo ficou negligenciado e relegado ao segundo plano da minha dor existencial e ao desequilíbrio da minha química cerebral. E marido, a contra gosto, passou a limpar as caixas dos gatos até que um dia resolveu dizer, com muita raiva, por sinal, que não iria mais fazer isso. Com toda razão, claro.
    Mesmo assim, eu resolvi adotar outro gato, o Monet, e percebemos que as crises de asma se asseveraram muitíssimo. Eu já estava em tratamento e, no mesmo prédio onde estava fazendo a psicoterapia, havia o consultório de pneumologia onde eu resolvi parar para marcar uma consulta para meu marido, coisa que eu já havia pedido para ele fazer muitíssimas vezes porque eu estava muito preocupada, pois não é bom usar bombinha de asma demasiadamente uma vez que ela pode danificar o coração com uso excessivo.
    Enfim, ele realizou a consulta, fez todos os exames possíveis e imagináveis e, adivinhem: alergia severa a pelos de gatos.
    Entretanto, ele já saiu do consultório fazendo o tratamento com um inalador profilático - que é de prevenir crises - e um antibiótico, pois estava com sinusite, que pode desencadear crises também.
    Bom, ele fez o uso das medicações e estava muito bem. A essa altura eu já estava também colocando os gatos para dormir fora de casa, já havia também tirado alguns itens meus de antiguidade do quarto e meus livros e objetos antigos ficaram restritos apenas à sala de casa.
    Marquei o retorno da consulta dele no mesmo dia da minha terapia, sendo que a consulta ocorreria antes da psicóloga. Quando fomos falar com o médico ele foi categórico em duas questões: que a responsabilidade do controle do ambiente era MINHA e que a decisão de ficar ou não os gatos era uma decisão da família, mas que diante de um quadro alérgico a ÚNICA solução é se afastar do alérgeno. Eu comecei a chorar e, ao que me parece, marido e médico ficaram chocados. O que ninguém entendia era: 1 - eu estava extremamente fragilizada emocionalmente, 2 - eu amo meus bichos, sempre tive animais desde que nasci e 3 - os gatos são minha responsabilidade. Eu os adotei e não podia simplesmente do dia para a noite me livrar dele, fosse o motivo que fosse. 
    Pois, o cretino do médico ainda disse ironicamente: "Não liga não, se ela gosta mais dos gatos que de você". Eu saí de lá me sentindo péssima. Um lixo, me culpando pela saúde do meu marido se deteriorando, porque teria de, provavelmente, fazer minha filha sofrer, pelos gatos que eu amava e que já havia tirado de uma situação de risco e negligência, que não tinham culpa do que estava acontecendo e me perguntava a todo o tempo: "o que eu iria fazer"?
    Entrei para a terapia chorando muito, com raiva, com medo, triste, me sentindo extremamente desamparada e sem lugar em que pudesse mostrar o que eu sentia de verdade sem que me sentisse incompreendida, fora daquele consultório.
    Eu tentei explicar ao esposo que não amava mais os gatos que a ele, mas que era uma questão mais complexa e que o médico havia sido muito insensível e insensato ao falar daquele jeito. Ele nem estava mais tendo as crises, afinal...
    Enfim, os gatos ficaram, o marido ficou, eu fiquei, a filha não soube o que aconteceu. Mas, o inconsciente de todos ficou abalado e a confiança do companheiro no meu amor se abalou. Em nossa primeira crise de casamento, 9 anos depois quase nos separamos e a história dos gatos veio à tona, junto com outras.
    Tive de explicar tudo para ele, ainda que já o tivesse feito, de uma forma mais pungente e clara de como a gente se sente ao ter de abandonar o que ou quem ama a uma pessoa que jamais teve de fazer isso na vida. E eu já havia feito isso algumas vezes, de forma que era, é e sempre será muito difícil. E que é uma questão de maturidade entender que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Eu sei, afinal, que a família é mais importante que tudo, que amar um não implica não amar o outro, afinal.
    Sempre que penso no "triângulo amoroso" da minha existência  - eu- marido - gatos -, eu me lembrava dos versos de Thiago de Mello e seu Artigo VIII... "a maior dor sempre foi e será sempre, não poder dar-se amor a quem  se ama", mas nunca havia sido muito clara a relação entre poema e situação.
    Durante a festa de aniversário da minha filha neste ano de 2021, porém, uma amiga questionava por que o marido não aceitava que em casa tivesse nenhum bichinho, incluindo o que a menina acabado de ganhar e estava amando. Imediatamente, me veio novamente essa relação do Artigo do Poeta e a clareza para discernir o que acontece nas nossas relações com respeito ao amar e não amar algo ou alguém: é muito fácil se afastar do que não se gosta, ao passo que afastar-se do que se ama é uma dor incomensurável e pode ser insuportável também.
    No entanto, quem não gosta, quem não ama, não entende e não entenderá nunca quem ama, pois o não amar implica na ausência desse sentimento pela coisa em si. Como, então, eu vou ter algo que não existe em mim?
    Vejam bem, eu não estou dizendo que a pessoa não tem capacidade de amar, mas que não pode nutrir algo que não tem por um determinado algo ou alguém, entende?
    Mas, para mim, o pior é saber que, muitas vezes, sequer queremos entender ou nos propomos a tentar nos colocar no lugar pensando no quão difícil é para alguém deixar de lado algo que ama muito em função do não-amor do outro.
    E vivemos assim a vida toda, porque, simplesmente, somos incapazes de ver os outros sem nos olhar no espelho que nos reflete neles e que nos impede de ver claramente a alteridade como ela realmente é.
    Neste exato momento estou na casa dos meus pais no interior do Goiás, bem próxima à cidade natal do meu pai. Normalmente aqui é tão quente que parece que há uma caldeira acesa debaixo do chão enquanto há dois sóis lá no céu. Mas, viemos e trouxemos a chuva e um tempo muito fresquinho.
    Estava na varanda enquanto minha mãe tirava algumas tiriricas da grama, retirava as folhas secas do mamoeiro e eu observava o lindo jardim que ela cultivou durante anos, pouquinho a pouquinho, com uma paciência fora do que ela mesma é. À frente dela, pulava um sapinho na grama alta que ela nem viu.
    O enorme pequizeiro, as suculentas na bela pérgola, o gramado, as ervas, os muitos tipos de begônias, espadas de São Jorge, Samambaias, cactos floridos, ervas aromáticas, roseiras lindíssimas - minhas favoritas... A casinha tão bem arrumadinha e acolhedora, os pássaros cantando: andorinhas, canários, os papagaios dos vizinhos, João-de-barro, o lindíssimo corrupião, pássaros pretos, araras. Os vizinhos queridos que chegam algumas vezes para conversar, outras para pedir ajuda, outras para saber como meus pais estão...
    Então, observando tudo isso, eu ouvi minha mãe dizer: "mas eu gosto, tanto, tanto, tanto daqui, sabia? Se não fossem vocês tão longe, eu ficaria só aqui"... E meu coração doeu por me lembrar que eu queria tanto que eles estivessem sempre perto de nós em Brasília que eu ignorei o que eles amavam por não amar a coisa em si e já briguei tantas vezes dizendo que eles deveriam ficar era em Brasília. Afinal, eles estão idosos e nos preocupamos com a saúde, com a segurança deles estrada afora... 
    Eu ainda não amo este lugar aqui. O único atrativo, para mim, são eles. Portanto, como eu não tenho amor por esse lugar, não entendia o amor deles. 
    E eu tive de me lembrar dos Estatutos do Homem, escrito justamente no ano de 1964 quando houve um extremo controle político do Brasil. Não discorrerei sobre o que acho ou o que eu deixo de achar sobre isso porque não é esse o assunto desse arrazoado aqui, mas esses Artigos, especialmente este que eu decorei com a idade que minha filha tem hoje, me mostram exatamente o tipo de amor que temos pelos outros e com os outros.
    A gente quer ter o controle do que o outro ama, gosta e deixa de amar e de gostar. Esse é o tipo de amor que a gente tem. E amar não é isso!
    Gibran, ao falar sobre o matrimônio, fala também sobre como se deve amar alguém: "que haja espaço entre vós"... E cita as colunas de um templo como exemplo de como um casal deve se comportar um com o outro. Temos um único objetivo, que é manter o "templo" em pé,  as colunas são cada uma, uma. Feitas separadamente, existindo e coexistindo juntas, mas não sendo uma só.
    Por isso eu vejo que as pessoas falam dos cães dessa forma: "ah, eu gosto de cachorro porque eles são alegres. Onde você os leva, eles vão, ainda que com medo, pois confiam cegamente em você. Fazem festa quando te vêm. Você briga com eles e eles nunca se ressentem. Se você chama para deitarem com você eles nunca recusam". Mesmo sendo louca por cães, eu penso sempre sobre isso... Que as pessoas compreendem o amor como controle. Como estar junto e fazer do outro um com você, de forma que tenham os mesmo gostos, que amem da mesma forma e que ajam do jeito como é mais conveniente para si.
    E aprendo com a lição do amor felino, sempre descrito como interesseiro, o que gosta da casa e não do dono, o que não fica, quer sempre fugir... E eu só consigo ver um ser independente, que é o que é. E que ama à sua maneira. Silencioso, espera. Mostra do que gosta, como gosta e, da mesma forma, quando não gosta. 
    Se precisa de sua companhia, estará lá. Sentindo-se bem longe de você, ficará longe. Aprecia os momentos de silêncio e respeita seu modo de ser da mesma forma. Gosta de ser livre, mas sente a necessidade de ficar. E, se não sente, vai embora e tudo bem. Há espaço entre o gato e seu dono, esse mesmo que não vê como mestre, mas como igual ou protetor. Sua inteligência inefável nos mostra que ele não se conforma com o que simplesmente lhe dão, mas entende que deve se expressar de uma forma que nos faça entender o que realmente quer.
    Das grandes lições que meus gatos me deram, a maior é essa: é um tormento estar longe de quem ou do que se ama, pois é o amor que dá à vida a beleza que ela requer para se perpetuar e caminhar.
    Enquanto isso, sigo aprendendo que a empatia não é apenas me colocar no lugar do outro em suas dores, mas é me colocar no lugar do outro para buscar entender, ainda que o amor por algo ou alguém não exista em mim. Que basta eu me lembrar dessa lição: é mais difícil abandonar o que se ama, é mais difícil deixar de amar do que me afastar do que não gosto ou não amo, ou deixar de fazer o que não gosto ou amo.
    Quanto à minha dinâmica familiar, consta que marido trouxe um gatinho para casa, que resgatou de situação de risco, com a condição de cuidarmos dele como lar temporário. Inicialmente Vincent, tornou-se Leonardo - vulgo Leozinho - e ficou... O pequeno é uma alegria só e é o rapazinho que estampa este texto.
    









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