domingo, 21 de fevereiro de 2021

Entre Vênus e Vênus

 Talvez alguns de vocês que me leem não sabem que sou Plus Size. Você sabe o que é isso? Bom, meu manequim está um pouco fora do padrão dito normal, então, eu estou em uma categoria acima do normal, entende? Eu visto entre 44 e 46, G ou GG, dependendo da confecção da roupa.

Mas, quem cunhou o termo Plus Size e como ele surgiu, afinal?

Bom, antes de qualquer coisa, precisamos andar um pouco atrás, na história da humanidade e entender como os padrões de beleza se desenvolveram. Afinal, beleza é algo muito subjetivo e cada cultura tem um parâmetro para dizer o que é belo ou não.

Sim, sim... Eu entendo que o cérebro humano detecta a simetria imediatamente e, encontrando algo que lhe pareça "estranho" imediatamente chama atenção de modo agradável ou desagradável. Porém, algumas coisas são muito mais subjetivas mesmo.

Por exemplo, temos as mulheres birmanesas e seus pescoços alongados por aros. Você já deve ter ouvido falar na expressão "Mulher Girafa", não? Eu, pessoalmente, acho estranho, mas elas são lindas aos olhos de sua cultura.

Mas, vamos passear pela história da beleza e entender algumas coisas que têm mais a ver com o ter do que ser e eu explicarei esse aparente paradoxo mais à frente...

Bom, uma das esculturas femininas mais antigas de que se tem notícia é a Vênus de Willendorf, essa fofa aí em baixo que está em diversas posições:

(Fonte: https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRBA9jPhbVpWTjJccTtv8mhn8tHoth_uhlqUQ&usqp=CAU - Extraído em 20/02/2021)

Vejam como ela é barrigudinha, tem seios fartos e caídos, pernas grossas... Esse era o ideal de beleza: aquela que pode sustentar a sua prole, aconchegar seus rebentos e alimentá-los na maior parte do tempo de sua vida fértil. Essa era "A" mulher!!! Essa estátua remonta ao período paleolítico e nos mostra como a sobrevivência de nossa espécie era tão importante que esse corpo era considerado perfeito a ponto de ser esculpido para ser deixado por gerações.

Esse padrão se revela em diversas esculturas até o período de ouro das civilizações mesopotâmicas, que, ainda que valorizem a intelectualidade e a religião, tinha como imagens para devoção de algumas vênus com características semelhantes à de Willendorf: curvilínea, seios fartos e compleição forte.

Já a civilização grega exaltou a beleza simétrica: uma silhueta mais fina e delicada, porém com algumas características de força bem marcadas, como músculos salientes em todo o corpo, pescoços um pouco mais largos e rostos mais esguios. A principal representante desse "padrão" grego é a bela Vênus de Milo, essa lindona sem seus bracinhos aí, ó:

(Fonte: https://hav120151.wordpress.com/2017/11/05/a-representacao-e-evolucao-da-figura-feminina-na-escultura-das-venus-pre-historicas-as-esculturas-gregas/ - extraído em 20/02/2021).

Depois, vieram os romanos e muita coisa rolou debaixo da ponte, queridos... Mas, eu quero dar um salto no tempo e parar nos tempos medievais, em que, novamente, ser mais gordinha era sinal de beleza... Mas, por que isso, afinal? Como eu disse acima, muito tem mais a ver, a partir de certo ponto da nossa História, com o ter, mais do que com o ser. 

Explico: é que, para uma mulher medieval ser mais gordinha significava muitas coisas, dentre elas que tinha comida disponível, tempo para ficar em casa só bordando e cuidando dos afazeres do lar que suas servas realizavam. Fora isso, o tom alvo de pele e as roupas elaboradíssimas, diziam que essa pessoa não precisava trabalhar, ou seja, era rica, bem criada e teria um bom dote para oferecer aos pretendentes que deveriam ser igualmente ricos como ela.

Bom, naquela época não era considerado muito bom ser camponês. Isso significava viver longe das cidades, passando horas ao sol rebanhando a criação da família, recolhendo lenha para os longos invernos ou passando o dia nas lavouras. Isso dava às mulheres uma compleição mais esguia, rostos finos e com a pele queimada. E isso queria dizer que ela era pobre e não teria um dote, lamentavelmente. Elas, provavelmente, também não conseguiriam gerar muitos filhos em um tempo curto. Isso porque as mulheres mais abastadas, as nobres e soberanas, para garantir uma numerosa prole, não amamentavam seus filhos, para que pudessem ter um filho atrás do outro e gerar a maior quantidade de herdeiros possíveis para as terras e riquezas das famílias. Então, elas teriam muitos filhos em um período maior de tempo e ainda jovens.

Já as mais pobres, além de terem de trabalhar pesado durante toda a gestação, amamentavam seus filhos enquanto podiam, o que fazia com que tivessem filhos a cada dois anos, mais ou menos. As que eram fortes e moravam próximas às nobres poderiam ser escolhidas para ser amas de leite, o que fazia com que elas tivessem de parar de amentar seus próprios filhos em detrimento dos filhos de suas patroas. Sim, isso é terrível, mas aconteceu até pouco tempo atrás. 

Mas, passado o tempo, o ideal de beleza mudou, assim como as vestimentas femininas também mudaram. Os vestidos que davam espaço para os bebês crescerem nas barrigas das mães passaram a ter a cintura marcada por espartilhos e a figura esguia, de cinturas finíssimas, braços delicados e mãos lisinhas passaram a ser o ideal de beleza. Pelo mesmo motivo, afinal, uma mulher com espartilhos apertadíssimos não podia trabalhar duro sob pena de passar muito mal. Então, eram suas criadas quem faziam todos os serviços pesados, pois podiam ficar com os corpos mais livres. As mais pobres eram as de corpos mais fortes, braços roliços, mãos pesadas, rosto queimado de sol... Eram as amas de leite que se encarregavam dos cuidados das crianças enquanto as mães recuperavam seus corpos magros e se preparavam para voltar à vida social. Durante as gestações, ficavam praticamente reclusas. Mostrar-se gestando era quase como sair nua à rua. Isso, talvez, mostrasse que ela tinha uma vida sexual ativa e isso não era algo que todos precisassem saber... Enfim, a hipocrisia!

O início do século XX, até os anos 20 foi mais ou menos assim. Até a chegada da magnífica Gabrielle Chanel, minha xará, que escandalizou sua sociedade por não usar espartilhos, usar preto sem estar de luto, usar calças e ser solteira, independente financeiramente, socialmente e sentimentalmente, as mulheres usavam espartilhos, roupas muito pesadas, cheias de detalhes e limitantes. Ela foi um escândalo, mas também era muito admirada e levantou um séquito de mulheres que queriam ser como ela. Ela trouxe uma moda mais acessível, utilizando tecidos mais leves, alguns deles considerados coisas de pobres, como o Tweed, uma trama rústica de lã, camisetas de algodão listradas - roupas consideradas de marinheiro - e outras cozitas más!

Vejam agora como e onde nasceu o tempo Plus Size:

O termo Plus Size, como conhecemos hoje, foi utilizado pela primeira vez em 1920, cunhado e disseminado pela norte-americana Lane Bryant. Ela abriu sua primeira loja em 1904, onde produzia e vendia roupas para gestantes. Seu item mais vendido era um vestido de maternidade com elástico na cintura e saia plissada. Por volta da década de 20, Bryant percebeu uma grande lacuna no mercado: os grandes fabricantes simplesmente ignoravam as mulheres mais robustas, que precisavam recorrer a ateliês particulares. Na época, ela chegou a medir mais de 4.500 de suas próprias clientes para conseguir desenvolver a modelagem perfeita para a sua nova linha. A premissa da designer era fornecer roupas de boa qualidade (e dentro das tendências) para mulheres fora das medidas padrões.

(Fonte: http://www.sindicatodaindustria.com.br/noticias/2017/08/72,115466/a-historia-da-moda-plus-size-e-a-evolucao-dos-padroes-de-beleza.html - Extraído em 20/02/2021).

Porém, ainda até os anos 60/70, as pessoas sentiam-se desconfortáveis ao ver mulheres grávidas andando com menos roupas... Que o diga Leila Diniz, que chocou a sociedade carioca ao aparecer na praia grávida e de biquíni! Interessante ressaltar que mostrar a barriga grávida nua era quase um sacrilégio. Não sei se a gravidez era considerada sagrada demais ou se isso era um choque de desconforto ao ver o corpo de uma mulher se modificar tanto para gerar um filho. O fato é que, novamente com a nova silhueta de Dior nos anos 50, que marcava a cintura de uma forma novamente opressora - não estou falando de opressão machista ou qualquer outra coisa, mas de um conceito corporal - de modo que a mulher voltasse a ter aquele shape mais de ampulheta, sabe?

Mas, os anos 60 chegaram e toda a sua rebeldia: roupas curtíssimas, modelagens mais soltinhas... Porém, cabelos mais estruturados: agora a rigidez era neles que passaram a ser quase esculturas... Anos 70 e toda a sua diversidade: cabelos livres, roupas de tudo quanto é jeito e uma atitude de liberdade pela liberdade. Anos 80 e o corpão curvilíneo a pele bronzeada e muita, muita, muita maquiagem e acessórios. A partir dos anos 70 já não cabia mais o visual muito embonecado. As mulheres saíram com tudo ao mercado de trabalho e estavam em busca de outros tipos de liberdade. Aqui, a questão da rigidez no penteado, no shape das roupas que mostravam que aquela mulher era uma dona de casa que fazia de tudo para ser perfeita não cabia mais.

O corpão dos anos 80 era conseguido com malhação aeróbica, que visava um corpo enxuto, mas nem tanto, e sem músculos bem marcados. O bronzeado, dizia que ela tinha tempo ao menos nos fins de semana para ir à praia ou clube. Isso, novamente, nos mostra que o ter ainda ditava um pouco dos padrões de beleza, afinal. Pois, ter um cabelo volumoso significava que a mulher tinha condições de fazer um permanente nos cabelos, podia pagar um bom cabeleireiro. As roupas extravagantes, as bijuterias da moda, a maquiagem... Tudo isso exigia um certo poder aquisitivo. Aliás, ainda exige.

Mas, os anos 90 começaram. E as semanas de moda, com o advento da Globalização, passaram a ter visibilidade mundial e todos começaram a ter acesso às imagens das coleções, assim como a moda se democratizou: as grandes redes copiavam os grandes designers e vendiam para as classes mais baixas enquanto os grandes nomes permaneciam com o créme de la créme do mundo. Foi quando os designers decidiram que o padrão a ser seguido era o da super modelo Kate Moss: magra, magríssima, quase anoréxica, com costela, ossos da bacia, clavículas e vértebras aparentes, cabelos lisíssimos caídos no rosto e rosto muito magro... Quase nenhum vestígio de seios. Surgiu o conceito de modelos cabides, ou seja, as roupas deveriam ser as protagonistas dos desfiles e não os corpos que as vestiam. Porém, entre os anos 90 e 2000, surgiu um perigoso padrão de beleza, ditado pelo, novamente, ter e não ser: as supermodelos estavam ganhando super salários, fazendo inúmeras campanhas de publicidade e ficando cada vez mais famosas e influentes no mundo da moda... 

Para muitas jovens, os corpos tamanho 34, 36, 38 passaram a ser suas metas e houve um boom de diagnósticos de transtornos alimentares ao redor do mundo. Bulimia e anorexia, associados aos seus pares, ansiedade e depressão. Uma tristeza!

Já na década de 2010, vimos o termo Plus Size ser novamente cunhado com mais ênfase. Essa questão do ter e ser começou a ser mais discutida e a explosão da modelo brasileira Flúvia Lacerda, descoberta ainda em 2003 em Nova York e hoje é considerada uma supermodelo colocou em cheque os padrões da indústria da moda. Por que, afinal, somente manequins até o 42 podem andar na moda? Vestir roupas que mostram que são antenadas com as mais recentes tendências e uma pessoa com o manequim acima disso não pode?

Flúvia tem a minha altura e veste mais que eu. Entretanto, eu acho que ela é simplesmente infinitamente mais bonita. Ontem mesmo eu coloquei várias roupas à venda porque, algumas delas eu acho que não ficam boas suficiente em mim. Porque meu peito isso, minha bunda aquilo, minhas coxas assim, minha cintura assado.

E eu me peguei pensando a respeito de mim e de muitas pessoas com as quais eu convivo, incluindo a minha família e em como eu gostaria que essa tal diversidade fosse mesmo real. Aliás, a diversidade é, mas o respeito à diversidade não é. À parte a questão de saúde, que é indiscutível, a gente não deveria ficar pensando em como vai parecer aos outros.

Sou muito vaidosa e quem me conhece mesmo até tem, muito de vez em quanto, a chance de me ver sem maquiagem e, como eu costumo dizer, com roupas de dona de casa. É muito raro, muito mesmo. Isso porque eu sei que sou extremamente insegura com a minha aparência. Eu gosto de me vestir bem, gosto de me maquiar, gosto que meu cabelo esteja lindo, preciso andar sempre perfumada, unhas feitas, sapatos legais. Ou eu não me sinto suficiente.

E o fato de isso ter acontecido comigo tem um pouco a ver com os mais de 30 quilos que ganhei após a maternidade. Já fui a muitos médicos, nutricionistas, já pratiquei e deixei de praticar atividades físicas (essa parte eu odeio!), já fiz dietas por conta própria e orientadas ao longo desses 10 anos de mãe, porém não emagreci mais. O máximo foram 6kg. 

Já encontrei pessoas com quem eu convivi intimamente e não me reconheceram, já encontrei pessoas que me disseram na lata que eu era mais bonita assim ou assado, já li coisas muito desagradáveis aqui mesmo nesta página do Universo... Gente que já disse que eu já era horrorosa e, quando parisse, ia foder tudo... E tudo isso já me deu uma rasteira na Passarela da vida.

Sou uma mulher frágil em mim mesma. E confesso que sou suscetível a algumas falas e olhares. Não ser reconhecida me fez extremamente mal. Ouvir que eu era mais bonita, me fez extremamente mal. Ouvir de médico que eu devo parar de usar desculpas para emagrecer me deixa mal... Saio do consultório me achando um lixo impotente, fraca, sem inciativa e resiliência.

Eu sei que se eu emagrecer minha mobilidade vai melhorar. Eu sei que se eu praticar exercícios físicos eu vou ficar mais saudável, eu sei que se eu começar a emagrecer eu vou ficar mais motivada... EU SEI!

Mas, alguém já me perguntou o que EU quero? Se você é Plus Size e está lendo isso aqui, eu vou perguntar para você: o que VOCÊ quer? O que eu e você queremos é realmente o que eu e você queremos ou o que os outros querem para nós? E eu não estou me referindo à saúde não. Estou me referindo à forma do seu corpo, o jeito como você gosta de se vestir, o que te faz rir mais do que ficar triste.

Estou falando do fato de você gostar de curtir uma boa comida, o fato de você não ficar só a peito de frango com batata doce e beber suco verde e tomar chá termogênico... Se for isso que te faz feliz, ótimo! Permaneça em seu caminho. Se não é isso, tome a única atitude que lhe cabe: administre o seu corpo para ser feliz.

No meu caso, eu já entendi que eu preciso emagrecer, nem que seja um pouco. E não é porque eu estou me sentindo feia, não. É porque minhas articulações estão sobrecarregadas e eu tenho problemas sérios com isso. Tenho uma frouxidão ligamentar muito acentuada e meus tornozelos, por exemplo, já estou dizendo que precisam de alívio para não "escorregarem" em si mesmos todas as vezes que vou andar. Da mesma forma meus joelhos e meu quadril. Eu literalmente PRECISO. 

Mas, meu caminho será árduo, pois eu DE-TES-TO atividades físicas. É algo que me deixa aborrecida. Não gosto das dores que sinto durante e depois dos exercícios, ODEIO suar... não gosto. Só que eu sei que é necessário até para me ajudar em alguns índices sanguíneos.

Não quero é ser padrão para ninguém. Nem dar desculpas para quem quer que seja estar acima ou abaixo do peso eficar doente. Não quero dizer aqui que você ou eu temos de nos conformar em ser uma  ser uma Vênus de Willendorf, ou de Milos... Quero que sejamos felizes. Não quero que seu padrão seja ditado pelo ter, mas pelo ser! 

Se você não tem grana para pagar um personal trainer, um nutrólogo, um nutricionista e passar mais de 3 horas em uma academia treinando - esse é o padrão ter dos nossos tempos - faça o que pode para ser mais saudável sem deixar de fazer as coisas de que gosta, seja comer uma buchada de bode no fim de semana, uma pizza, ou a sua salada e seu frango com batata doce. Só não deixe de ser feliz e não deixe de aproveitar o lado bom da vida.

Eu vou prometer aqui e quero que você se prometa daí a não me levar pela minha ansiedade e parar de ouvir, ver e sentir somente aquilo que me denigre. Eu prometo que vou me olhar no espelho e dizer que me amo, de qualquer jeito. Seja com os cabelos pretos, longos e de franjinha lisos, ou encaracolados, volumosos e ruivos, com 1,72m e 60kg, ou com 90kg, que eu vou me amar! 

"Eu te amo, Gabi! E te aceito do jeito que você é! 

E, se quem está ao seu lado, seja homem, filha, pai, mãe, irmãos, sobrinhos, tios, primos, amigos, colegas de trabalho ou conhecidos não forem tão gentis, você será, Gabi! 

Você tem o direito de chorar por isso de vez em quando, mas lembre-se de ser uma pessoa em um corpo e não de ter uma pessoa em um corpo. Saúde não tem a ver apenas com o seu peso ou com a sua aparência externa. Tem a ver com o que está oculto à maioria das pessoas. Tem a ver com o fato de que seu corpo processa bem os nutrientes que você lhe dá.

Presta atenção, Gabi: você é linda - tá legal, isso foi difícil de escrever! - e você é amada por quem você é, não por quem você parece. Não é sua cintura 67 ou 80 que faz você uma pessoa melhor ou pior que ninguém, mas são as suas atitudes e sua maneira de ver a vida e o que você faz com ela.

Eu tenho orgulho, Gabizinha, da sua trajetória. Da mulher que você se tornou. Eu vou te amar, do jeito que você é"!

Essa é minha promessa a mim mesma! E eu quero que seja você quem for e que está lendo isto aqui, que vá em frente. Mostre o que é. Não o que tem! 


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Destra

                A mesma pena que empunho com tanta destreza, o mesmo pincel que o papel e a tela afaga, essa voz calada, surda e quieta, são as mesmas armas que cravam de dor essa minha mão direita.

                Essa destra que a letra derrama ao invés de lágrimas, essa mão que ri no lugar dos lábios, essa mão que xinga ao invés da língua, esses dedos que beijam no lugar da minha boca... que faz amor, que dança, que se admira e que o amor declara para os olhos de quem quer e pode ler.

                Há um punhal em minha mão quando a tristeza me inunda.

                Essa dor fina, curta e latente que meu corpo todo sente na minha mão.

                Um mistério doloroso, infame e vil, decadente, destrutivo, corrosivo e cru.

                Essa minha mão que com amor o alimento prepara, que acarinha e que bate, que demonstra sensualidade, carrega o anel e minhas muitas verdades.

                Hoje, essa mão, gostaria de percorrer um corpo nu, cravar as unhas nas costas de tanto prazer.

                Queria também dar prazer acarinhando cada centímetro de hormônios, de cheiros... calar a boca que geme nesse paraíso sexual que a natureza clama.

                Mas, essa mão sente os defeitos do corpo que a carrega. Os defeitos cerebrais por quem ela, dolorosamente chora.

Essa mão sente os efeitos dos padrões, os efeitos de um tempo que passou.

                Aqui, e nesse instante, ela junta letra a letra, para dizer que ela dói e que ela sente um tempo que se foi e que lamenta um futuro que não sabe se será.

                Essa mão... que se junta à esquerda para esperar, que se contorce quando a angústia vem, que as lágrimas seca e que toca os lábios para, pensativa, aquietar.

                Essa mão, à destra do que sinto, penso e vivo, essa mão destra que embala os sonhos que ainda vivo.


Sobre gatos, casamento e amor.


Artigo VIII 
Fica decretado que a maior dor 
sempre foi e será sempre 
não poder dar-se amor a quem se ama 
e saber que é a água 
que dá à planta o milagre da flor.

Os Estatutos do Homem - Thiago de Mello

   O lindo texto de Thiago de Mello fez 50 anos em 2014... Mas, eu o li pela primeira vez na quarta série, quando eu tinha apenas  9 anos, nos idos anos de 1988. E eu me apaixonei! E decorei esse Artigo para jamais esquecê-los.
   Eu amo gatos. Amo mesmo. E já tive alguns ao longo da vida. Tive dois gatos amarelos, que foram abandonados na porta da nossa casa, na quadra 15 de Sobradinho, onde vivi até os 19 anos e pouquinho. O primeiro se chamava Fievel e, da mesma forma como o Batatinha, que chegou anos depois, foi deixado de tal forma tão pequeno que tinha de tomar leite em um frasco de remédio de nariz. 
    Mas, papai não gostava de gatos. Não obstante, eles foram ficando, sem, contudo, jamais terem posto as patinhas dentro de casa e eram criados soltos. Acostumaram-se com os cães com os quais brincavam quando desciam dos telhados. 
    Na minha imaturidade e desconhecimento, eu não cuidei deles como deviam ser cuidados e nem dava-lhes a atenção que mereciam. Simplesmente eles sumiam, creio eu que mortos em brigas. 
    Anos se passaram e eu fui morar com a minha tia que tinha, na época, duas gatinhas, sendo uma SRD e outra Persa. Quando lá cheguei fui logo adotada pela SRD, uma escaminha muito fofa, gorda e serelepe, minha amiguinha. Nina era o nome dela. Onde eu estava no apartamento, ela estava junto. E, pasme, se eu abrisse meu olhos ao acordar no quarto, mesmo sem dizer nada, ela já começava a pedir para entrar. 
    Muitas vezes, quando eu acordava o sofá modular estava completamente espalhado pela sala, porque ela escondia seus ratinhos de brinquedo e, na brincadeira - ela era enorme e muito gorda - ela fazia aquele pandemônio... Era impressionante de ver. Ela me levava até a porta quando saía e me recebia todas as noites quando eu chegava. 
    Passava a noite no meu colo e, enquanto eu estivesse acordada ela ficava junto a mim. Aos finais de semana, quando eu tinha a chance de ficar o dia inteiro em casa, ela estava lá comigo, invariavelmente.
    Foi ela que me fez apaixonar por gatos. Eu sempre dizia a ela que, quando eu fosse embora da casa da minha tia eu a levaria junto comigo. E eu saí. Um dia, em uma visita, Nina, como de costume, me levou até a porta e eu disse: "vamos, Nina? Vamos comigo?" E ela foi até o elevador. Cheirou tudo, analisou e, creio eu, chegou à conclusão de que aquele lugar onde eu queria levá-la era muito pequeno, muito apertado e sem janelas ou conforto algum. Então, ela olhou para mim de um modo como quem dissesse: "é aqui que vc mora"? E voltou. 
    A vida continuou, muitas coisas aconteceram... Eu já havia saído da casa da minha tia, o namoro acabou, voltei para a casa dos meus pais, durante a reforma da casa, voltei para a casa da minha tia, quando a reforma acabou, voltei para a casa dos meus pais, engravidei, casei e, depois de algum tempo, soube que Nina havia fugido pois minha tia, depois da morte do meu avô paterno, mudou-se do apartamento para uma casa grande para acomodar minha avó e meu tio que era especial. Nina não se adaptou. Eu soube quando já estava em estado avançado de gravidez e ninguém queria me contar por causa disso, pois sabiam como eu era louca por ela.
    Estava com cerca de 6 anos de casada quando adotei uma gata. Resolvi que todos os gatos que tivesse teriam nomes de artistas plásticos, escritores ou musicistas eruditos. E a primeira era a Tarsila, em homenagem à Amaral, mulher elegante, bela, inteligente, independente e muito à frente de seu tempo. A minha Tarsila é exatamente assim. 
    Meu marido é asmático. E sempre tinha crises. Identificamos, mesmo antes da chegada de Tarsila, que um dos motivos pelos quais ele tinha crises era a parede infiltrada e mofada do quarto onde dormíamos. Pois bem, consertamos e tudo legal... Tarsila chegou e não rolavam muitas crises. Mudamos de casa e as crises de asma do marido se asseveraram. Concluímos que era por causa do guarda-roupas. Na impossibilidade financeira de trocá-lo, meu consorte resolveu que dormiria no outro quarto. 
    Pois bem, Camille, minha outra gata chegou e trocamos o armário e, de quebra, fizemos o do quarto da filha e equipamos o escritório. Marido voltou a dormir no quarto e, por um tempo, ficou sem ter crises, somente algumas vezes.
    Como ele era com as gatas? Não gostava e não gosta, mas até aí tudo legal, porque eu quem fazia a maior parte das obrigações com elas, inclusive todas as responsabilidades de uma "mãe" de gatos. 
    Todos sabem que eu tenho depressão e que, por algum tempo, até que eu realmente fizesse um tratamento sério e multidisciplinar, estava descontrolada... Eu saía de casa para trabalhar e isso porque minha filha estudava em uma escola quase ao lado do meu trabalho. Então, digamos assim, Sofia era o motivo pelo qual eu saía da cama todos os dias. Portanto, até mesmo meus gatos, minha casa, eu, meu marido, tudo ficou negligenciado e relegado ao segundo plano da minha dor existencial e ao desequilíbrio da minha química cerebral. E marido, a contra gosto, passou a limpar as caixas dos gatos até que um dia resolveu dizer, com muita raiva, por sinal, que não iria mais fazer isso. Com toda razão, claro.
    Mesmo assim, eu resolvi adotar outro gato, o Monet, e percebemos que as crises de asma se asseveraram muitíssimo. Eu já estava em tratamento e, no mesmo prédio onde estava fazendo a psicoterapia, havia o consultório de pneumologia onde eu resolvi parar para marcar uma consulta para meu marido, coisa que eu já havia pedido para ele fazer muitíssimas vezes porque eu estava muito preocupada, pois não é bom usar bombinha de asma demasiadamente uma vez que ela pode danificar o coração com uso excessivo.
    Enfim, ele realizou a consulta, fez todos os exames possíveis e imagináveis e, adivinhem: alergia severa a pelos de gatos.
    Entretanto, ele já saiu do consultório fazendo o tratamento com um inalador profilático - que é de prevenir crises - e um antibiótico, pois estava com sinusite, que pode desencadear crises também.
    Bom, ele fez o uso das medicações e estava muito bem. A essa altura eu já estava também colocando os gatos para dormir fora de casa, já havia também tirado alguns itens meus de antiguidade do quarto e meus livros e objetos antigos ficaram restritos apenas à sala de casa.
    Marquei o retorno da consulta dele no mesmo dia da minha terapia, sendo que a consulta ocorreria antes da psicóloga. Quando fomos falar com o médico ele foi categórico em duas questões: que a responsabilidade do controle do ambiente era MINHA e que a decisão de ficar ou não os gatos era uma decisão da família, mas que diante de um quadro alérgico a ÚNICA solução é se afastar do alérgeno. Eu comecei a chorar e, ao que me parece, marido e médico ficaram chocados. O que ninguém entendia era: 1 - eu estava extremamente fragilizada emocionalmente, 2 - eu amo meus bichos, sempre tive animais desde que nasci e 3 - os gatos são minha responsabilidade. Eu os adotei e não podia simplesmente do dia para a noite me livrar dele, fosse o motivo que fosse. 
    Pois, o cretino do médico ainda disse ironicamente: "Não liga não, se ela gosta mais dos gatos que de você". Eu saí de lá me sentindo péssima. Um lixo, me culpando pela saúde do meu marido se deteriorando, porque teria de, provavelmente, fazer minha filha sofrer, pelos gatos que eu amava e que já havia tirado de uma situação de risco e negligência, que não tinham culpa do que estava acontecendo e me perguntava a todo o tempo: "o que eu iria fazer"?
    Entrei para a terapia chorando muito, com raiva, com medo, triste, me sentindo extremamente desamparada e sem lugar em que pudesse mostrar o que eu sentia de verdade sem que me sentisse incompreendida, fora daquele consultório.
    Eu tentei explicar ao esposo que não amava mais os gatos que a ele, mas que era uma questão mais complexa e que o médico havia sido muito insensível e insensato ao falar daquele jeito. Ele nem estava mais tendo as crises, afinal...
    Enfim, os gatos ficaram, o marido ficou, eu fiquei, a filha não soube o que aconteceu. Mas, o inconsciente de todos ficou abalado e a confiança do companheiro no meu amor se abalou. Em nossa primeira crise de casamento, 9 anos depois quase nos separamos e a história dos gatos veio à tona, junto com outras.
    Tive de explicar tudo para ele, ainda que já o tivesse feito, de uma forma mais pungente e clara de como a gente se sente ao ter de abandonar o que ou quem ama a uma pessoa que jamais teve de fazer isso na vida. E eu já havia feito isso algumas vezes, de forma que era, é e sempre será muito difícil. E que é uma questão de maturidade entender que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Eu sei, afinal, que a família é mais importante que tudo, que amar um não implica não amar o outro, afinal.
    Sempre que penso no "triângulo amoroso" da minha existência  - eu- marido - gatos -, eu me lembrava dos versos de Thiago de Mello e seu Artigo VIII... "a maior dor sempre foi e será sempre, não poder dar-se amor a quem  se ama", mas nunca havia sido muito clara a relação entre poema e situação.
    Durante a festa de aniversário da minha filha neste ano de 2021, porém, uma amiga questionava por que o marido não aceitava que em casa tivesse nenhum bichinho, incluindo o que a menina acabado de ganhar e estava amando. Imediatamente, me veio novamente essa relação do Artigo do Poeta e a clareza para discernir o que acontece nas nossas relações com respeito ao amar e não amar algo ou alguém: é muito fácil se afastar do que não se gosta, ao passo que afastar-se do que se ama é uma dor incomensurável e pode ser insuportável também.
    No entanto, quem não gosta, quem não ama, não entende e não entenderá nunca quem ama, pois o não amar implica na ausência desse sentimento pela coisa em si. Como, então, eu vou ter algo que não existe em mim?
    Vejam bem, eu não estou dizendo que a pessoa não tem capacidade de amar, mas que não pode nutrir algo que não tem por um determinado algo ou alguém, entende?
    Mas, para mim, o pior é saber que, muitas vezes, sequer queremos entender ou nos propomos a tentar nos colocar no lugar pensando no quão difícil é para alguém deixar de lado algo que ama muito em função do não-amor do outro.
    E vivemos assim a vida toda, porque, simplesmente, somos incapazes de ver os outros sem nos olhar no espelho que nos reflete neles e que nos impede de ver claramente a alteridade como ela realmente é.
    Neste exato momento estou na casa dos meus pais no interior do Goiás, bem próxima à cidade natal do meu pai. Normalmente aqui é tão quente que parece que há uma caldeira acesa debaixo do chão enquanto há dois sóis lá no céu. Mas, viemos e trouxemos a chuva e um tempo muito fresquinho.
    Estava na varanda enquanto minha mãe tirava algumas tiriricas da grama, retirava as folhas secas do mamoeiro e eu observava o lindo jardim que ela cultivou durante anos, pouquinho a pouquinho, com uma paciência fora do que ela mesma é. À frente dela, pulava um sapinho na grama alta que ela nem viu.
    O enorme pequizeiro, as suculentas na bela pérgola, o gramado, as ervas, os muitos tipos de begônias, espadas de São Jorge, Samambaias, cactos floridos, ervas aromáticas, roseiras lindíssimas - minhas favoritas... A casinha tão bem arrumadinha e acolhedora, os pássaros cantando: andorinhas, canários, os papagaios dos vizinhos, João-de-barro, o lindíssimo corrupião, pássaros pretos, araras. Os vizinhos queridos que chegam algumas vezes para conversar, outras para pedir ajuda, outras para saber como meus pais estão...
    Então, observando tudo isso, eu ouvi minha mãe dizer: "mas eu gosto, tanto, tanto, tanto daqui, sabia? Se não fossem vocês tão longe, eu ficaria só aqui"... E meu coração doeu por me lembrar que eu queria tanto que eles estivessem sempre perto de nós em Brasília que eu ignorei o que eles amavam por não amar a coisa em si e já briguei tantas vezes dizendo que eles deveriam ficar era em Brasília. Afinal, eles estão idosos e nos preocupamos com a saúde, com a segurança deles estrada afora... 
    Eu ainda não amo este lugar aqui. O único atrativo, para mim, são eles. Portanto, como eu não tenho amor por esse lugar, não entendia o amor deles. 
    E eu tive de me lembrar dos Estatutos do Homem, escrito justamente no ano de 1964 quando houve um extremo controle político do Brasil. Não discorrerei sobre o que acho ou o que eu deixo de achar sobre isso porque não é esse o assunto desse arrazoado aqui, mas esses Artigos, especialmente este que eu decorei com a idade que minha filha tem hoje, me mostram exatamente o tipo de amor que temos pelos outros e com os outros.
    A gente quer ter o controle do que o outro ama, gosta e deixa de amar e de gostar. Esse é o tipo de amor que a gente tem. E amar não é isso!
    Gibran, ao falar sobre o matrimônio, fala também sobre como se deve amar alguém: "que haja espaço entre vós"... E cita as colunas de um templo como exemplo de como um casal deve se comportar um com o outro. Temos um único objetivo, que é manter o "templo" em pé,  as colunas são cada uma, uma. Feitas separadamente, existindo e coexistindo juntas, mas não sendo uma só.
    Por isso eu vejo que as pessoas falam dos cães dessa forma: "ah, eu gosto de cachorro porque eles são alegres. Onde você os leva, eles vão, ainda que com medo, pois confiam cegamente em você. Fazem festa quando te vêm. Você briga com eles e eles nunca se ressentem. Se você chama para deitarem com você eles nunca recusam". Mesmo sendo louca por cães, eu penso sempre sobre isso... Que as pessoas compreendem o amor como controle. Como estar junto e fazer do outro um com você, de forma que tenham os mesmo gostos, que amem da mesma forma e que ajam do jeito como é mais conveniente para si.
    E aprendo com a lição do amor felino, sempre descrito como interesseiro, o que gosta da casa e não do dono, o que não fica, quer sempre fugir... E eu só consigo ver um ser independente, que é o que é. E que ama à sua maneira. Silencioso, espera. Mostra do que gosta, como gosta e, da mesma forma, quando não gosta. 
    Se precisa de sua companhia, estará lá. Sentindo-se bem longe de você, ficará longe. Aprecia os momentos de silêncio e respeita seu modo de ser da mesma forma. Gosta de ser livre, mas sente a necessidade de ficar. E, se não sente, vai embora e tudo bem. Há espaço entre o gato e seu dono, esse mesmo que não vê como mestre, mas como igual ou protetor. Sua inteligência inefável nos mostra que ele não se conforma com o que simplesmente lhe dão, mas entende que deve se expressar de uma forma que nos faça entender o que realmente quer.
    Das grandes lições que meus gatos me deram, a maior é essa: é um tormento estar longe de quem ou do que se ama, pois é o amor que dá à vida a beleza que ela requer para se perpetuar e caminhar.
    Enquanto isso, sigo aprendendo que a empatia não é apenas me colocar no lugar do outro em suas dores, mas é me colocar no lugar do outro para buscar entender, ainda que o amor por algo ou alguém não exista em mim. Que basta eu me lembrar dessa lição: é mais difícil abandonar o que se ama, é mais difícil deixar de amar do que me afastar do que não gosto ou não amo, ou deixar de fazer o que não gosto ou amo.
    Quanto à minha dinâmica familiar, consta que marido trouxe um gatinho para casa, que resgatou de situação de risco, com a condição de cuidarmos dele como lar temporário. Inicialmente Vincent, tornou-se Leonardo - vulgo Leozinho - e ficou... O pequeno é uma alegria só e é o rapazinho que estampa este texto.
    









Faxina!

Tenho a sensação de que, de uns tempos para cá, minha vida está sendo colocada em uma esfera pequenina... Eu fico pensando que, de tão pequ...